terça-feira, 11 de setembro de 2012

E eles?

   

     [...]a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
    Não afirmo sem prova.
    Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: Que calor! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
    Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oitos homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

ASSIS, Machado de. O nascimento da crônica. In: SANTOS, Joaquim Ferreira (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p.26

domingo, 9 de setembro de 2012

São horas de tédio

Van Gogh - Still Life with Absinthe


São vinte e duas horas e trinta e sete minutos.


Arfo, oscilante. 


Calor tropicalista; setembro é primaveril. 


Cores são apresentadas, arte é interpretada, inclusive pelas massas. 

Metrópole do Império Tupiniquim, existem bastões de concreto, pessoas a rufar. 

Essa máquina não para de girar; moldes imprimem semblantes monetários, ah, a vida  é acrisolaria!



São vinte e duas horas e quarenta e nove minutos.

Temo o acaso,

acaso que é um caso casado,

casado com o calvário do tempo.

Tempo? Esse tempo! Tempo maldito;

maldito por me analisar, minúcias por minúcias.

Por que tanto tempo, vós, tempo, não vês? Não vês o tempo que gastei com vós, tempo?



Que caso.







sábado, 8 de setembro de 2012

Viver, viver, viver!

 
Red Headed Woman in the Garden of M.Foret, Toulouse-Lautrec, 1887



    "Onde foi - pensou Raskólnikov seguindo adiante -, onde foi que eu li que um condenado à morte, uma hora antes de morrer, pensava e dizia que se tivesse de viver em algum lugar alto, em um penhasco, e numa área tão estreita que só coubessem dois pés - e cercado de abismos, mar, trevas eternas, solidão eterna e tempestade eterna - e fosse forçado a permanecer assim, em pé no espaço de um archin a vida inteira, mil anos, toda a eternidade, seria melhor viver assim do que morrer agora!? Contanto que pudesse viver, viver, viver! Não importa como viver, mas apenas viver!... Que verdade! Deus, que verdade! O homem é um canalha! E é canalha aquele que por isso o chamar de canalha"* - Acrescentou um minuto depois.

*Trata-se de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo. (N. da E.)

DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 172.


terça-feira, 4 de setembro de 2012

A coisa é clara:


    


     A coisa é clara: não se vende em proveito próprio, por conforto, nem para escapar da morte, mas se vende em proveito do outro! Se vende por uma pessoa querida, por uma pessoa adorada! É nisso que consiste toda essa nossa coisa: pelo irmão, pela mãe ela se vende! Vende tudo! Oh, aqui, havendo oportunidade, nós esmagamos até o nosso sentimento ético; levamos à loja de usados a liberdade, a tranquilidade, até a consciência, tudo, tudo. Dane-se a vida! Contanto que esses nossos seres apaixonados sejam felizes. Como se não nos bastasse inventar a nossa própria casuística, aprendemos com os jesuítas e, pode ser, por um momento tranquilizamos a nós mesmos, persuadimos a nós mesmos de que se deve agir assim, de que realmente se deve, para atingir um bom objetivo. Nós somos assim mesmo, e é tudo claro como o dia. É claro que aqui não é de outro senão de Rodion Románovith Raskólnikov, que se trata e em primeiro plano. Ora, como não? Pode-se construir a felicidade dele, custear-lhe a universidade, fazê-lo sócio do escritório, garantir todo o seu destino, pode ser que depois até se torne rico, honrado, respeitado, e talvez até termine a vida como um homem célebre. E a mamãe? Sim, mas aqui se trata de Ródia, do inestimável Ródia, do primogênito! Pois bem, para um primogênito como esse como não sacrificar até mesmo uma filha como essa? Oh corações amáveis e injustos![...]Não quero o seu sacrifício, Dúnietchka, não quero, mamãe! Isso não vai acontecer enquanto eu estiver vivo, não vai acontecer, não vai! Não aceito.


DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 59-60.

A morte por sentença


Ilustração contida na edição "O Idiota" da Editora 34


     A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera  sem falta que se salvará, até o último instante. Há exemplos de que a pessoa está com uma garganta cortada, mas ainda tem esperança, ou foge, ou pede ajuda. Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com certeza, não se vai fugir a ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo.  


O Idiota - Fiódor Dostoiévski

Ismália


Alphonsus de Guimaraens



Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Alba


VINÍCIUS DE MORAES


Alba, no canteiro dos lírios estão caídas as pétalas de uma rosa cor de sangue
Que tristeza esta vida, minha amiga…
Lembras-te quando vínhamos na tarde roxa e eles jaziam puros
E houve um grande amor no nosso coração pela morte distante?
Ontem, Alba, sofri porque vi subitamente a nódoa rubra entre a carne pálida ferida
Eu vinha passando tão calmo, Alba, tão longe da angústia, tão suavizado
Quando a visão daquela flor gloriosa matando a serenidade dos lírios entrou em mim
E eu senti correr em meu corpo palpitações desordenadas de luxúria.
Eu sofri, minha amiga, porque aquela rosa me trouxe a lembrança do teu sexo que eu não via
Sob a lívida pureza da tua pele aveludada e calma
Eu sofri porque de repente senti o vento e vi que estava nu e ardente
E porque era teu corpo dormindo que existia diante de meus olhos.
Como poderias me perdoar, minha amiga, se soubesses que me aproximei da flor como um perdido
E a tive desfolhada entre minhas mãos nervosas e senti escorrer de mim o sêmen da minha volúpia?
Ela está lá, Alba, sobre o canteiro dos lírios, desfeita e cor de sangue
Que destino nas coisas, minha amiga!
Lembras-te, quando eram só os lírios altos e puros?
Hoje eles continuam misteriosamente vivendo, altos e trêmulos
Mas a pureza fugiu dos lírios como o último suspiro dos moribundos
Ficaram apenas as pétalas da rosa, vivas e rubras como a tua lembrança
Ficou o vento que soprou nas minhas faces e a terra que eu segurei nas minhas mãos.

Rio de Janeiro, 1935